Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Há 50 anos, Portugal fez valer a liberdade, mas a igualdade não veio

Em março, 18% escolheram o Chega, partido nostálgico do salazarismo, xenófobo e racista

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O cinquentenário da Revolução dos Cravos, na próxima quinta-feira, consagra o 25 de abril como a data maior do calendário cívico português. Há razão para isso: ela celebra a derrubada do mais longo dos regimes fascistas, o Estado Novo, proclamado por Salazar quatro décadas antes.

Seria como se o Estado Novo de Vargas fosse espichado dos anos 1930 em diante –sem a abertura do pós-Guerra, sem Dutra, JK, Jânio nem Jango– e se engatasse na ditadura de 1964. O salazarismo foi apoiado pelos Estados Unidos por toda essa era de opressão.

"Ditaduras desse tipo às vezes são necessárias em países cujas instituições políticas não são tão avançadas quanto as nossas", explicou cinicamente, em 1960, o presidente americano Dwight D. Eisenhower.

O fascismo luso atendia a interesses ianques palpáveis. Dois anos antes do 25 de Abril, Washington usara as bases portuguesas nos Açores para mandar armas a seu enclave no Oriente Médio, Israel. Sem elas, os árabes poderiam talvez vencer a Guerra do Yom Kippur.

Em troca, a ditadura teve carta branca para continuar explorando suas colônias na África, o que era também do agrado dos EUA porque atravancava o avanço das guerrilhas amparadas pela União Soviética em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.

A guerra d’além-mar foi o motivo imediato do 25 de Abril. Se durante décadas o saque africano enchera os cofres do salazarismo, em 1974 ele dava prejuízo. Um em cada quatro adultos aptos ao serviço militar estava nas Forças Armadas e 150 mil deles lutavam na África.

Segundo "O Império Derrotado", do historiador americano Kenneth Maxwell, em Angola um oficial português ganhava menos que um porteiro; seu soldo era inferior ao de um barbeiro em Moçambique.

Em contrapartida, metade do gasto nacional ia para operações militares. A sangria se dava num país onde o salário médio era um quinto do existente no Reino Unido e 37% da população não sabia ler.

A ilustração, feita em tons de cinza, apresenta uma cena com três mulheres de lenços escuros na cabeça e flores vermelhas nas mãos.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 19 de abril de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

A Revolução dos Cravos começou como um golpe militar. Um grupo de oficiais, a maioria capitães, se insurgiu contra o sistema de promoções nas Forças Armadas, que lhe era prejudicial. Fez um manifesto ambíguo em relação à guerra ultramarina e pôs os tanques na rua.

Apesar dos apelos para que ficasse em casa, o povo saiu às ruas e pôs cravos nos fuzis dos rebeldes. A polícia política deu uns tiros e logo se rendeu, com apenas quatro mortos. Não foi preciso guilhotinar ninguém. A aristocracia salazarista fugiu para o Brasil e a ditadura a acolheu no colo.

Dias depois, Portugal parou para comemorar o 1º de Maio. E começou aquilo que o novo regime chamou de Processo Revolucionário em Curso –algo que só se vira na Petrogrado de 1917, dois anos depois em Berlim e, em 1936, em Barcelona, na aurora da guerra civil espanhola.

Houve milhares de greves selvagens. Fábricas e empresas foram ocupadas. Camponeses expropriaram terras. Estatizaram-se bancos. Moderados tiveram de sair do governo. Embriões de sovietes pipocaram ali e acolá.

Henry Kissinger, o arauto das trevas da diplomacia americana, percebeu o perigo e disse ao presidente Gerald Ford: "Em dez anos poderemos ter de enfrentar uma Europa socialista". Mesmo o manso Mario Soares, líder do Partido Socialista, de início pregou um Portugal "sem classes".

Até o colapso do capitalismo no continente onde nascera parecia possível. Dependia do povo português. Porque, como diz a letra de "Grândola, Vila Morena", a canção que serviu de senha para os capitães tomarem Lisboa no 25 de Abril, "o povo é quem mais ordena".

No povo cabiam os sem-terra do sul, operários de Lisboa e estudantes das grandes cidades, os que gritavam "o povo, unido, jamais será vencido".

Cabiam também os pequenos proprietários rurais do centro e do norte, sensíveis ao anticomunismo dos curas da igreja. Ali, a palavra de ordem era "patrão, amigo, o povo está contigo".

Mario Soares e o PS fizeram da liberdade a bandeira da sua campanha para a Assembleia Constituinte, um ano depois da Revolução dos Cravos. O partido teve 38% dos votos e virou governo. O povo não queria ordenar; queria ordem.

Portugal veio a se integrar à Europa do status quo. A igualdade não veio, mas nem todos estão satisfeitos. Nas últimas eleições, em março, 18% dos votantes escolheram o Chega, partido nostálgico do salazarismo, xenófobo e racista.

Ainda assim, Portugal está melhor que o Brasil. Aqui, quase metade dos eleitores votaram em Bolsonaro, que não só defende a ditadura como armava um golpe para reimplantá-la.

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